Inclusão
Falar com as mãos
Levar os surdos para a sala regular exige nova postura do professor, tato para lidar com o intérprete e, acredite, muitas explicações orais
Cinthia Rodrigues (novaescola@atleitor.com.br)
O VALOR DA FALA NAS AULAS COM SURDOS
A professora de Geografia Marilda Dutra, de São José, na Grande Florianópolis, aprendeu rápido que o uso
do quadro-negro precisa ser revisto. Acostumados com a comunicação oral, os alunos com deficiência têm maiores dificuldade para ler. "Quando escrevo,
é mais difícil perceber quem entendeu. Se explico,
vejo no rosto de todos (dos que escutam e não) se estão acompanhando. Desenho e gesticulo o quanto precisa.". Foto: Eduardo Lyra
A professora de Geografia Marilda Dutra, de São José, na Grande Florianópolis, aprendeu rápido que o uso
do quadro-negro precisa ser revisto. Acostumados com a comunicação oral, os alunos com deficiência têm maiores dificuldade para ler. "Quando escrevo,
é mais difícil perceber quem entendeu. Se explico,
vejo no rosto de todos (dos que escutam e não) se estão acompanhando. Desenho e gesticulo o quanto precisa.". Foto: Eduardo Lyra
Mais sobre deficiência auditiva
Reportagens
A  inclusão de crianças com deficiência auditiva sempre foi polêmica, mas  recentemente ganhou um novo rumo em nosso país. De acordo com a política  do governo federal, elas não devem mais ficar segregados nas escolas  especiais e precisam estudar desde cedo em unidades comuns, com um  intérprete que traduza todas as aulas para a Língua Brasileira de Sinais  (Libras) e o contraturno preenchido por atividades específicas para  surdos. Problema resolvido? Nem de longe. Enquanto entidades do setor  ainda denunciam a falta de estrutura para a implementação das regras, os  docentes já começam a receber parte dessa nova clientela e estão  criando formas próprias de trabalho - muitas com sucesso. 
Não é  uma tarefa fácil nem existe uma fórmula conceitualmente correta para  lidar com a situação. Cada caso é um caso. A professora de Geografia  Marilda Dutra, da EE Nossa Senhora da Conceição, em São José, na Grande  Florianópolis, por exemplo, aprendeu uma lição curiosa logo nos  primeiros dias de trabalho. Para ensinar quem não ouve, ela tem de falar  mais. A maior mudança foi deixar o giz em segundo plano. Cada tipo de  relevo, clima e vegetação precisava de fotografias, desenhos, gravuras e  muitos exemplos verbais. Em vez de simples mapas, o mundo passou a ser  representado em bolas de isopor para facilitar a compreensão dos  meridianos.
Maria Inês Vieira, coordenadora do Programa de  Acessibilidade da Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da  Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo  (Derdic-PUC), explica o motivo da necessidade de rever o uso do  quadro-negro. "Mesmo que o surdo já saiba ler e escrever em português,  ele demorará mais para entender orientações por escrito", diz. A  especialista ensina que o ouvinte entende a sequência de palavras  escritas porque tem uma cultura prévia oral. Já quem não ouve está sendo  apresentado ao português como um todo e não conhece a organização da  língua. "Os conjuntos de palavras podem não fazer sentido na maneira  como ele aprendeu a pensar. É como traduzir apenas as palavras de um  texto em alemão ou chinês. Não é o suficiente para a compreensão do  todo", diz. 
Em Florianópolis, a professora de Matemática  Silvana Maria Soster teve outra reação no início do ano passado, quando  foi informada pela direção da EM Luiz Cândido da Luz que uma de suas  classes da 2ª fase do ciclo 2 (equivalente ao 5º ano, mas já com um  docente por disciplina) teria quatro alunos surdos. "Tomei um susto.  Nunca tinha passado por isso e pensei: será que posso?", conta. Para  Roseli Baumel, educadora livre-docente especializada em Educação  Especial da Universidade de São Paulo (USP), esse tipo de dúvida é  natural. "Temos de ser honestos e admitir que não estamos prontos",  orienta a especialista.
Recursos diferenciados para a turma heterogênea  
OBJETOS  VARIADOS AJUDAM A ENSINAR  A professora Silvana Maria, de  Florianópolis, levou um susto quando soube que receberia quatro alunos  surdos. Hoje, ela não só ensina para os estudantes com deficiência como  também aplica parte da metodologia diferenciada, enriquecida por  materiais diversos, nas salas só com ouvintes. "As dificuldades dos  outros meninos são iguais. Apenas achei mais uma forma de resolvê-las".   Foto: Eduardo Marques
Passado o receio inicial, Silvana  percebeu com o tempo que quase tudo precisava ser adaptado: a postura, a  maneira de falar, a avaliação e, principalmente, os materiais. "Uma  pessoa que cresceu sem escutar aprende por observação. Ela precisa ver,  montar e perceber os conceitos de forma concreta", diz Roseli. Foi  assim, com aulas visuais e exemplos palpáveis, que conseguiu lecionar.  Usou material emborrachado, quadrados, cubos, jogos, dados e desenhos.  Ensinou adição com objetos que se agrupavam. Para a multiplicação,  dividiu os próprios alunos da sala em quadrados desenhados no chão: três  turmas de quatro igual a 12, cinco grupos de cinco crianças resultavam  em 25. As frações foram entendidas com círculos desenhados na mesa em  formato de pizza: com dois pedaços do total de oito, se faz um quarto.  Até a probabilidade ficou mais fácil com uma boneca de papel e várias  roupas para combinar. 
No entanto, mesmo com materiais  diferenciados e maior número de explicações orais, um cuidado essencial  deve ser tomado para garantir um trabalho de sucesso. O educador precisa  se policiar para não fazer duas versões da aula - uma para os alunos  que escutam e outra para os deficientes auditivos. Como explica Ronice  Muller, coordenadora do primeiro curso de licenciatura Letras-Libras do  país, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a base da  inclusão é a integração total entre os alunos. "A escola deve se tornar  bilíngue. Os colegas têm de aprender Libras, afinal, no futuro, eles vão  falar com os surdos inclusos na sociedade", afirma. 
Para  isso, professores da língua de sinais devem dar aulas aos ouvintes e  incentivar trabalhos em grupo. Foi o que aconteceu em Irará, cidade de  25 mil habitantes a 128 quilômetros de Salvador. A EM São Judas Tadeu  começou a receber surdos em 2005. Além dos professores, as turmas em que  os deficientes auditivos são matriculados recebem noções de libras. "As  crianças aprendem rápido e, em vez de ficar com preconceito, logo  ajudam os professores a entender o que os colegas surdos dizem", explica  o diretor da unidade, Márcio Jambeiro.
Conversas animadas, mas sem sons nem gritos  LIBRAS  TAMBÉM PARA QUEM ESCUTA  Na EM São Judas Tadeu, em Irará, a 128 quilômetros de Salvador, as aulas oferecidas pelos tradutores eram  anunciadas nos corredores para que estudantes e docentes pudessem se  organizar e participar. A adesão foi grande. "Vinham professores e  alunos. Às vezes, também um porteiro ou o diretor", conta a intérprete  Edma Oliveira dos Santos. Hoje, é comum ver alunos surdos e ouvintes  conversando normalmente no pátio. Foto: Fernando Vivas
Os  cursos de libras para ouvintes começaram explorando os horários livres  dos intérpretes. As aulas dos tradutores eram anunciadas nos corredores e  na sala dos professores para os interessados. Havia opções em vários  dias e em horários diferentes. Assim, os estudantes ouvintes que  aprendiam o básico começavam a prestar atenção nos movimentos do  intérprete em sala, ouvindo ao fundo a voz do professor e decorando as  palavras. 
No fim das aulas, era comum ver estudantes tirando  dúvidas sobre as lições. "Hoje, as crianças que estudam em salas com  surdos se comunicam bem com eles. Mesmo no intervalo, você anda pelos  corredores e vê todos conversando em libras fluentemente." 
A  fase adiantada em que se encontra a inclusão na cidade baiana mostra que  boas iniciativas podem prosperar mesmo fora das grandes capitais. Muito  desse sucesso se deve a 20 anos de dedicação de uma professora. Nos  anos 1980, Edma Olivera dos Santos dava aula para o Ensino Fundamental  em uma escola rural multisseriada, quando recebeu um aluno surdo. "Na  época, a orientação era falar devagar e esperar que eles aprendessem a  leitura labial. Percebi que não ia funcionar e comecei a sinalizar, eles  sinalizaram de volta e assim foi", lembra. 
Com o passar dos  anos, ela aprendeu libras e começou a ser procurada por todos os pais de  surdos de Irará. Quando o governo instituiu que os deficientes  auditivos deveriam estudar em escolas regulares, ela se tornou  intérprete de seus ex-alunos na EM São Judas Tadeu. "Tenho orgulho de  dizer que eles estão entre os melhores em todas as turmas", afirma. 
Mesmo com experiências pioneiras em desenvolvimento no Brasil,  especialistas, autoridades e docentes reconhecem que ainda há  dificuldades e falhas. Faltam experiência e, na maior parte do país,  material adequado, salas de apoio e intérpretes. A maioria dos surdos só  aprende Libras quando vai para escola e, até que se tornem fluentes no  idioma, não entendem os intérpretes e podem perder o interesse. A  recomendação de Edma a qualquer colega que receber um aluno surdo é que  enfrente o desafio. "Para eles, a escola é ainda mais importante. Quando  um deficiente auditivo aprende a escrever, vai ao médico sozinho e bota  no papel: eu estou com dor de cabeça. O professor tem em mãos a grande  chance de dar autonomia a uma pessoa."
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